A arte perdida da noção

Noção vem do latim notionem, conceito, concepção, ideia, percepção. O substantivo tem como raiz o verbo noscere, , vir a saber, conhecer.

Ter noção é algo que precede o saber. É a percepção de que há algo para ser aprendido ou notado. Talvez a melhor palavra pra substituir noção seja a velha gíria ~simancol~. Antes mesmo de saber se pode ou não pode, se deve ou não deve, se é ou não é, você tem que ter o simancol para perceber que não sabe e não é hora de perguntar.

Exemplos? Infinitos.

Você encontra um amigo que não via há anos e ele está abraçado a uma jovem que não é a mesma mulher que ele um dia apresentou como sua esposa. A noção faz com que você note a diferença e, num átimo, perceba que as possibilidades para aquela garota podem ser conflitantes ou constrangedoras. Porque pode ser uma nova mulher, a filha dele, uma amiga, uma acompanhante paga, a irmã. Ou simplesmente alguém que ele não quer apresentar porque a vida é dele e ninguém tem nada com isso.

A pessoa sem noção e que além de tudo se acha engraçada, já chega atirando merda no ventilador:

– NOssa, fulano! Essa mulher não é a mesma que estava com você da última vez que eu te vi! Trocou a velha por uma mais nova, é filha da velha ou é só amante? KKKKK

Tem muita gente sem a menor noção.

Gente que não apenas não percebe que está sendo inconveniente como não LIGA pro fato de estar constrangendo você. Ela acha ENGRAÇADO. É aquela pessoa que fala de problemas intestinais durante o seu jantar e, quando alguém chama a atenção para o fato, ela argumenta com ‘o que é que tem? A comida vai virar cocô mesmo! ahahahah’.

Eu tenho absoluto PAVOR de gente assim. Pavor.

Porque a pessoa sem noção é um perigo. Pra ela e, principalmente, pros outros.

É como um bebê brincando com uma faca, uma criança com uma arma. Ela é um adulto sem cérebro que pode causar uma hecatombe social. Com a agravante de que, porque teve boa intenção em seus gestos, ela se sente INJUSTIÇADA quando você não curte a atitude dela.

Na minha infância, quando eu frequentava festas de bairro num clube alemão, convivi com muitos adultos sem noção. Gente alegre que tomava cerveja com salsicha no penico durante as festas, que levantava os vestidos das mulheres pra mostrar a calcinha, que dançava com a vassoura no baile. Lembro de uma espécie de tio sem noção que achava engraçado cutucar todas as pessoas no umbigo. Sério, gente, ele achava isso muito sensacional. E todo mundo achava constrangedor, desagradável, deselegante e até dolorido. Imagine um cara bêbado no salão enfiando o indicador no seu umbigo com uma mão e tomando chopp num penico com a outra. Felizmente sempre fugi dessas brincadeiras. Como eu disse, tenho pavor.

Hoje, pra meu desespero, é moda não ter noção. Existe todo um culto à falta de noção. Porque em módulo, uma pessoa totalmente sem noção é quase tão ‘genial’ aos olhos das pessoas como um Einstein. É igual só que ao contrário. (Se bem que o exemplo é meio ruim porque Einstein era meio sem noção em algumas coisas, pelo menos pelas biografias que eu já li dele. SAbe, pra compensar a genialidade como físico e matemático, ele tinha umas idiossincrasias. Enfim.)

Não ter noção, seja de forma espontânea ou intencional, acaba levando a pessoa ao tão buscado ‘patamar de fama’ que muitos procuram. Aliás, o atalho para a fama via ausência de miolos é de fácil acesso. Qualquer pessoa que, AGORA, fizer uma coisa tosca num ponto geográfico muito movimentado, pode estar nas manchetes nas próximas horas. É por isso que em volta das emissoras de TV, de jornais, rádios e demais veículos de mídia, sempre tem gente fantasiada, gritando, mostrando faixas. São pessoas desesperadas usando artifícios sem-noção para que alguém as perceba.

Aos olhos da modernidade eu também sou sem noção. Onde já se viu escrever um texto desse tamanho? Será que eu não sei que ninguém mais tem foco, paciência ou capacidade pra ler mais que 2 parágrafos? Sei sim. Eu estou escrevendo vários deles com a intenção de que todos os sem noção desistam do texto antes de chegarem aqui. É uma forma de me certificar que, se você ESTÁ LENDO ESTE TRECHO é porque você é uma pessoa COM noção. Que quer terminar de ler até o final, para chegar a uma possível conclusão.

E a conclusão, querido leitor, é simples. Ser civilizado é ter a noção de que o mundo não começou quando nascemos, não gira em torno de nós, não existe para realizar nossos desejos. É aprender a conter a curiosidade em detrimento do bem estar do próximo. É conter-se no sentido de caber-se, de ter cabimento. É estar contente no sentido de estar pleno, contendo tudo lhe cabe, mesmo que que seja menos do que gostaríamos.

A arte da noção está morrendo. Talvez deixe de ser usada, como o latim e vire uma língua que quase ninguém entende.
Seja o que D’us quiser.
Alea jacta est.