Como é difícil sair de um círculo vicioso

O desespero de se sentir espiralando. Para baixo. Tipo ralo.

Até 2017 eu estava indo bem. Em 2018 eu estava ótima. Não para o mundo, mas para mim mesma. Treinava seis dias por semana, três de corrida e três de musculação, me alimentava de forma saudável, tinha pedido demissão de um trabalho presencial para fazer homeoffice e estava produzindo mil coisas. Eu me sentia disposta para encarar o mundo, me relacionar com a família e os amigos, os cachorros. Eu viajava bastante, fazia tricô, tudo certo. Eu me sentia, basicamente, uma mulher feliz.

Tão feliz que entrei num círculo virtuoso. Porque eu treinava bastante e cuidava da saúde, eu conseguia correr bem. Porque eu conseguia correr bem, eu melhorava meu desempenho. Porque eu melhorava meu desempenho eu participava de mais corridas de rua. Porque eu postava fotos das minhas medalhes de corrida, recebia mais estímulo e apoio para continuar. E porque eu era estimulada eu me cuidava mais, treinava mais, comia melhor, trabalhava mais feliz, tratava a mim e ao mundo de forma mais amorosa. E por isso tudo resolvi me preparar para correr minha primeira maratona, 42 km. E me inscrevi na Maraonta de Porto Alegre do ano seguinte.

Busquei acompanhamento médico, nutricional, ginecológico, comecei uma longa planilha de treinos e vida regradissima, dormindo cedo e acordando cedíssimo. Em junho de 2019, prestes a fazer 62 anos, peguei o avião com minha filha e seu marido, rumo a Porto Alegre. Corri a maratona sorrindo e cruzei a linha de chegada sentindo uma alegria infinita, aquele. momento que a gente depois lembra como ‘o auge’.

Depois disso viajei, trabalhei, com a sensação de ser uma pessoa realizada em todos os sentidos, equilibrada, melhor. Até que, em dezembro, um vírus surgiu em Wuihan, na China. E o resto você já sabe. No dia 11 de março de 2020 foi decretada mundialmente a pandemia do Coronavírus. E começou meu processo de espiralar para baixo.

Fiquei em lockdown total. Eu não saia de casa para absolutamente nada. Descia, no máximo no térreo do meu prédio. Tudo estava fechado, academia, parques, a cidade toda. O mundo. Tentei correr na garagem do edifício, mas era complicado e pequeno. Tentei correr num corredor lateral do prédio, mas era minúsculo e movimentado. Tentei fazer aulas online de aeróbica. Funcionou durante um tempo. Aluguei uma bike de spinning, que usava de vez em quando. Fui desistindo de cuidar de mim aos poucos. A massa muscular foi diminuindo, o peso corporal aumentando, a energia foi sumindo, a disposição minguando. Peguei um monte de trabalhos e passei a escrever o dia todo, sentada. Quando não estava escrevendo estava pesquisando, mas sempre sentada e online. Da cadeira ia pra um sofazinho, com o celular. Não viajei mais. Era só em casa, sem ver ninguém, sem ir a lugar nenhum. Nem liguei que fiz aniversário, nem me lembro o que fiz. Meus filhos estavam ambos morando fora do país, minha mãe morando a 30km de mim e sem podermos nos ver. Era só meu marido, eu e os cachorros e mais nada. Nada.

Não entrei em depressão, fui me distraindo com séries, livros. Vendemos a casa de praia que tinhamos durante quase 30 anos. O mundo foi ficando limitado a esse apartamento. E nem fazia sentido reclamar, vendo milhares de pessoas sem dinheiro, em emprego, morrendo.

Raspei meu cabelo, deixei os fios brancos e resolvi ver quem eu era, como eu estava. Estava ali, mais ou menos bem, mas em horizonte. Sem rumo, sem projeto de vida, sem sonhos. Sem programa com o Porchat, sem gravação no Rio de Janeiro, sem as palestras que dei a vida toda, sem as viagens, sem tudo que eu amava ver e fazer.

Fui perdendo a forma física, a capacidade de correr. Continuei tentando, como sempre fiz, sem entregar os pontos, mas totalmente diferente daquele auge de 3 anos atrás. Saia para correr de máscara, pelas ruas do meu. bairro. Até que em setembro de 2021, num dia que eu estava correndo bem, meu tênis ficou preso numa lajota quebrada dentro de um imenso buraco na calça que não vi, porque exatamente naquele segundo eu estava olhando o relógio para ver meu pace. Fui de boca no chão. De boa. Machuquei o lábio, o joelho direito e nem conseguia levantar. Um rapaz me ajudou a ficar em pé. Corria sangue pela cara e pela perna. Cheguei em casa me arrastando.

Foram três ou quatro meses até me recuperar e tentar recomeçar a correr. Depois, vieram sequelas de correr com medo de pisar. Fiz meses de fisioterapia. Recomecei com muito esforço, mas nunca mais corri como antes. Perdi capacidade pulmonar, velocidade, tudo, especialmente por causa do sobrepeso. E porque não consigo correr direito, passei a comer mais. E porque passei a comer mais e de forma desregrada, ganhei mais peso e passei a correr mais lentamente. Nem preciso continuar, já está claro que entrei num círculo vicioso. Não me cuido, não treino direito, corro mal, não tinha mais provas de rua para correr, não havia motivo para ser estimulada.

Apesar de tudo, nunca desisti totalmente. Tenho tentado voltar a fazer a bicicleta (estou indo fazer agora!), de vez em quando faço aulas em vídeo e voltei a treinar no parque três vezes por semana. Fiz uma corrida de 14km recentemente, depois uma meia maratona (21km ) que foi extremamente difícil e no dia 20 de março (foto abaixo), corri 10km no circuito OUtono das Estações. Fiz um tempo horrível. Olhei o resultado de 2017 e deu vontade de chorar ( em 2017, fiz um pace médio de 5:54, terminei a prova em 59 minutos).

Mas é o que temos. É o que é. É o mundo possível, num momento brutar e injusto de guerra. É o país sob um governo trágico, absurdo, cruel e inaceitável que eu espero que termine. É o corpo de quase 65 anos que habito, do qual cuido como posso. É a minha mente, sempre tentando achar um jeito de ser feliz, mesmo espiralando, ora pra cima, ora pra baixo.

Porque uma hora, a hora muda e em breve, vou melhorar.